domingo, 20 de novembro de 2016

SOBRE O PEQUENO NICOLAU....CADA NICOLAU DO MUNDO

CADA  NICOLAU DO MUNDO
                                                                      Tânia Ferreira[1]


Vou tentar extrair um aspecto que o filme O Pequeno Nicolau[2] nos permite tomar em solidariedade de estrutura com a psicanálise.
O cinema, como o concebe Alain Badiou[3] (2004), seria não apenas uma arte de figuras do mundo exterior ou do tempo e do espaço, mas fundamentalmente “uma arte das grandes figuras da humanidade em ação, um tipo de cena universal da ação. São formas fortes, encarnadas, dos grandes valores que se discutem em um dado momento” (BADIOU, 2004, p. 34).
Em O Pequeno Nicola, num jogo de proximidade com a realidade conserva-se, entretanto, na ficção, o olhar e o corpo infantil, a gestualidade própria da criança, seu ser de mistério e enigma, seu não saber frente ao que o Outro quer dela “o que ser quando crescer”, frente aos  enigmas do nascimento, da vida, de seu frágil lugar no campo do Outro que, em seu pensamento, pode se esvair num triz, com a ameaça de um outro que tomaria seu lugar, seus brinquedos, seu amor...
Estes enigmas da vida que fazem questão para as crianças, Freud já nos havia indicado como elas lidam com eles: Diz Freud[4]: “As crianças tecem suas teorias”...Nicolau e as outras crianças vão tecendo as suas...
Digno de nota são os efeitos da  palavra dos adultos sobre as crianças, o sentido particular que tem sobre elas e para elas...Vimos como as crianças tomam em sua referência a palavra e vão, por associação, construindo sua fantasia como recurso frente ao real do que constitui para ela o desejo do outro,,, O pequeno polegar solto na floresta e Nicolau, num ato de identificação, toma a gentil oferta de um passeio na floresta, como repetição da história de ser abandonado lá...
Estas e outras passagens vão desenhando a leitura que cada criança faz do mundo segundo o que lhe é ofertado pela cultura... Entre olhares, gestos e silêncios que Nicolau e seus colegas não podem traduzir em palavras, sua infância vai sendo rasgada e ele é introduzido  na estrangeira intimidade dos adultos, onde não é poupado, assim como não são milhares de crianças que ele retrata.
 Nicolau e seus amigos podem dizer entre eles, transmitir o que pensam e sabem, mas curiosamente,  nenhum adulto é colocado em posição de escuta....Não é justamente  isso mesmo que acontece com várias crianças?
A riqueza da escuta do cineasta, dando voz às crianças, colocando mais em relevo seu saber, suas saídas inventivas, seus malabarismos no campo do Outro – mesmo daqueles que são seus agentes de cuidado, mantém com a psicanálise, uma solidariedade de estrutura.
 O que o filme demonstra em ato – ai faz enlace com a psicanálise – é que uma vez fazendo oferta de palavra à criança, Nicolau, Alceu, Eudes, Clotário, Godofredo,  vão podendo dizer, podendo se situar, se apreender no mundo...
O que gostaria de colocar em relevo é que, as diferentes formas interpretativas tentam explicar o que é a infância em suas especificidades biológicas, psicossociais, pedagógicas. As concepções de infância são múltiplas e variadas, mas algo permanece como indiscutível em todas elas: a compreensão da infância como um tempo de incompletude, de inacabado, em relação à completude da vida adulta. Historicamente a ideia de que a infância é um tempo de imaturidade, de carência, de falta, vai inscrevê-la como a um tempo vazio de responsabilidades, colocando a criança como aquela incapaz de compreender e principalmente, incapaz de saber, de falar, sendo por isso mesmo, falada pelo outro
Exemplo disso é o caso de Bernardo: Diz a reportagem:
“Bernardo Boldrini, 11 anos, encontrado morto na última segunda-feira, chegou a procurar o Ministério Público por conta própria pedindo para não morar mais com o pai e a madrasta. E indicou duas famílias com as quais gostaria de ficar. Em janeiro, o menino esteve no MP de Três Passos, no Rio Grande do Sul, e relatou detalhes de sua rotina, marcada pela indiferença e pelo desamor na casa em que vivia. O pai, o médico Leandro Boldrini, 38 anos, a madrasta, a enfermeira Graciele Ugulini, 32, e uma terceira pessoa estão presos, acusados de participação na morte da criança.


A negligência afetiva em relação a Bernardo chegou ao conhecimento do MP em meados de novembro. Na ocasião, um expediente foi instaurado para apurar o caso. A promotora da Infância e da Juventude de Três Passos, Dinamárcia Maciel de Oliveira, pediu informações a órgãos da rede de proteção, como o Conselho Tutelar e a escola em que o menino estudava, e fez levantamentos sobre parentes que poderiam assumir a guarda do menino. Mas O juiz da Vara da Infância e da Juventude do Fórum de Três Passos, Fernando Vieira dos Santos, 34 anos, chorou ao lembrar que o caso do menino passou pelas mãos dele no processo movido pelo Ministério Público do município. O garoto pediu ajuda ao Centro de Defesa da Criança e do Adolescente, órgão ligado à prefeitura, e a queixa chegou ao MP, que a transformou em um processo. A ação acabou na mesa de Santos, que intimou as partes. Como não havia registro de violência física, o magistrado optou por tentar preservar os laços familiares, suspendendo o processo por 60 dias para dar chance de uma reaproximação.


Contudo, a palavra de Bernardo não foi considerada....Bernardo tinha um déficit...amoroso, protetivo...
Este caso é um caso ensinante...Ele interpela os agentes de cuidado sobre o destino que se dá à palavra da criança, à sua assinatura, ao seu destino .... Bernardo tentou fazer o seu próprio projeto de proteção, sua medida protetiva, mas não deu....Pois para nós a criança não é a autoridade....O adolescente não é autoridade.
Afinal, a autoridade é dos operadores do direito ou a “autoridade científica” prepondera sobre qualquer outro poder e são os dispositivos de uma saúde oficial que passam a regular e a “resignificar” a criança e o adolescente.
             A psicanálise, tomada ao rigor de sua ética, busca fazer um corte neste modo de pensar e conceber a infância e a criança.
Tal como o que o cineasta vigorosamente sustenta a premissa de que para a psicanálise — a palavra da criança, bem como a posição que toma frente ao que diz,o seu saber construído, suas respostas, suas saídas inventivas - não somente são escutados e considerados, mas também faz de cada uma  um sujeito e de plenos direitos”.[5]
Cada Nicolau do mundo, frente ao Outro, ao desejo do Outro, que constitui para ele um enigma, tece sua resposta. Cada Nicolau se embaraça frente a um terceiro que entra na relação de suposta “completude com a mãe”; cada Nicolau tenta se arranjar com o que tem de recursos, sintomáticos ou não, frente à angústia. Seja ela de um real em jogo na pergunta “o que o Outro quer de mim?”, seja frente à eminência da perda de um lugar no mapa do desejo dos pais, seja ela frente ao embaraço da separação ou de uma fantasia de abandono. Em qualquer uma destas circunstâncias, o sujeito responde com o desamparo. Desamparo psíquico que Freud deixa antever em vários momentos de suas elaborações e que nos ensinam sobre a clínica com crianças.  
Esta é a transmissão que gostaríamos: de que a palavra e o saber da criança precisam ser não somente escutados, mas valorizados, acolhidos e tratados...

    
                                                          



[1] Psicanalista, Mestre e Doutora em Educação, Pós-Doutora em Psicologia ( Psicanálise e Cultura/UFMG)
[2] Data de lançamento 2 de julho de 2010 (1h 30min )Direção: Laurent Tirard França,
[3] IN: Pequeno Manual da Inestética.
[4] Verificar: Sobre as Teorias Sexuais das Crianças.
[5] Esta expressão de Rosine Lefort, psicanalista francesa, tem sido traduzida e conhecida como “a criança é um analisante por inteiro”.

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