domingo, 20 de novembro de 2016

SOBRE O PEQUENO NICOLAU....CADA NICOLAU DO MUNDO

CADA  NICOLAU DO MUNDO
                                                                      Tânia Ferreira[1]


Vou tentar extrair um aspecto que o filme O Pequeno Nicolau[2] nos permite tomar em solidariedade de estrutura com a psicanálise.
O cinema, como o concebe Alain Badiou[3] (2004), seria não apenas uma arte de figuras do mundo exterior ou do tempo e do espaço, mas fundamentalmente “uma arte das grandes figuras da humanidade em ação, um tipo de cena universal da ação. São formas fortes, encarnadas, dos grandes valores que se discutem em um dado momento” (BADIOU, 2004, p. 34).
Em O Pequeno Nicola, num jogo de proximidade com a realidade conserva-se, entretanto, na ficção, o olhar e o corpo infantil, a gestualidade própria da criança, seu ser de mistério e enigma, seu não saber frente ao que o Outro quer dela “o que ser quando crescer”, frente aos  enigmas do nascimento, da vida, de seu frágil lugar no campo do Outro que, em seu pensamento, pode se esvair num triz, com a ameaça de um outro que tomaria seu lugar, seus brinquedos, seu amor...
Estes enigmas da vida que fazem questão para as crianças, Freud já nos havia indicado como elas lidam com eles: Diz Freud[4]: “As crianças tecem suas teorias”...Nicolau e as outras crianças vão tecendo as suas...
Digno de nota são os efeitos da  palavra dos adultos sobre as crianças, o sentido particular que tem sobre elas e para elas...Vimos como as crianças tomam em sua referência a palavra e vão, por associação, construindo sua fantasia como recurso frente ao real do que constitui para ela o desejo do outro,,, O pequeno polegar solto na floresta e Nicolau, num ato de identificação, toma a gentil oferta de um passeio na floresta, como repetição da história de ser abandonado lá...
Estas e outras passagens vão desenhando a leitura que cada criança faz do mundo segundo o que lhe é ofertado pela cultura... Entre olhares, gestos e silêncios que Nicolau e seus colegas não podem traduzir em palavras, sua infância vai sendo rasgada e ele é introduzido  na estrangeira intimidade dos adultos, onde não é poupado, assim como não são milhares de crianças que ele retrata.
 Nicolau e seus amigos podem dizer entre eles, transmitir o que pensam e sabem, mas curiosamente,  nenhum adulto é colocado em posição de escuta....Não é justamente  isso mesmo que acontece com várias crianças?
A riqueza da escuta do cineasta, dando voz às crianças, colocando mais em relevo seu saber, suas saídas inventivas, seus malabarismos no campo do Outro – mesmo daqueles que são seus agentes de cuidado, mantém com a psicanálise, uma solidariedade de estrutura.
 O que o filme demonstra em ato – ai faz enlace com a psicanálise – é que uma vez fazendo oferta de palavra à criança, Nicolau, Alceu, Eudes, Clotário, Godofredo,  vão podendo dizer, podendo se situar, se apreender no mundo...
O que gostaria de colocar em relevo é que, as diferentes formas interpretativas tentam explicar o que é a infância em suas especificidades biológicas, psicossociais, pedagógicas. As concepções de infância são múltiplas e variadas, mas algo permanece como indiscutível em todas elas: a compreensão da infância como um tempo de incompletude, de inacabado, em relação à completude da vida adulta. Historicamente a ideia de que a infância é um tempo de imaturidade, de carência, de falta, vai inscrevê-la como a um tempo vazio de responsabilidades, colocando a criança como aquela incapaz de compreender e principalmente, incapaz de saber, de falar, sendo por isso mesmo, falada pelo outro
Exemplo disso é o caso de Bernardo: Diz a reportagem:
“Bernardo Boldrini, 11 anos, encontrado morto na última segunda-feira, chegou a procurar o Ministério Público por conta própria pedindo para não morar mais com o pai e a madrasta. E indicou duas famílias com as quais gostaria de ficar. Em janeiro, o menino esteve no MP de Três Passos, no Rio Grande do Sul, e relatou detalhes de sua rotina, marcada pela indiferença e pelo desamor na casa em que vivia. O pai, o médico Leandro Boldrini, 38 anos, a madrasta, a enfermeira Graciele Ugulini, 32, e uma terceira pessoa estão presos, acusados de participação na morte da criança.


A negligência afetiva em relação a Bernardo chegou ao conhecimento do MP em meados de novembro. Na ocasião, um expediente foi instaurado para apurar o caso. A promotora da Infância e da Juventude de Três Passos, Dinamárcia Maciel de Oliveira, pediu informações a órgãos da rede de proteção, como o Conselho Tutelar e a escola em que o menino estudava, e fez levantamentos sobre parentes que poderiam assumir a guarda do menino. Mas O juiz da Vara da Infância e da Juventude do Fórum de Três Passos, Fernando Vieira dos Santos, 34 anos, chorou ao lembrar que o caso do menino passou pelas mãos dele no processo movido pelo Ministério Público do município. O garoto pediu ajuda ao Centro de Defesa da Criança e do Adolescente, órgão ligado à prefeitura, e a queixa chegou ao MP, que a transformou em um processo. A ação acabou na mesa de Santos, que intimou as partes. Como não havia registro de violência física, o magistrado optou por tentar preservar os laços familiares, suspendendo o processo por 60 dias para dar chance de uma reaproximação.


Contudo, a palavra de Bernardo não foi considerada....Bernardo tinha um déficit...amoroso, protetivo...
Este caso é um caso ensinante...Ele interpela os agentes de cuidado sobre o destino que se dá à palavra da criança, à sua assinatura, ao seu destino .... Bernardo tentou fazer o seu próprio projeto de proteção, sua medida protetiva, mas não deu....Pois para nós a criança não é a autoridade....O adolescente não é autoridade.
Afinal, a autoridade é dos operadores do direito ou a “autoridade científica” prepondera sobre qualquer outro poder e são os dispositivos de uma saúde oficial que passam a regular e a “resignificar” a criança e o adolescente.
             A psicanálise, tomada ao rigor de sua ética, busca fazer um corte neste modo de pensar e conceber a infância e a criança.
Tal como o que o cineasta vigorosamente sustenta a premissa de que para a psicanálise — a palavra da criança, bem como a posição que toma frente ao que diz,o seu saber construído, suas respostas, suas saídas inventivas - não somente são escutados e considerados, mas também faz de cada uma  um sujeito e de plenos direitos”.[5]
Cada Nicolau do mundo, frente ao Outro, ao desejo do Outro, que constitui para ele um enigma, tece sua resposta. Cada Nicolau se embaraça frente a um terceiro que entra na relação de suposta “completude com a mãe”; cada Nicolau tenta se arranjar com o que tem de recursos, sintomáticos ou não, frente à angústia. Seja ela de um real em jogo na pergunta “o que o Outro quer de mim?”, seja frente à eminência da perda de um lugar no mapa do desejo dos pais, seja ela frente ao embaraço da separação ou de uma fantasia de abandono. Em qualquer uma destas circunstâncias, o sujeito responde com o desamparo. Desamparo psíquico que Freud deixa antever em vários momentos de suas elaborações e que nos ensinam sobre a clínica com crianças.  
Esta é a transmissão que gostaríamos: de que a palavra e o saber da criança precisam ser não somente escutados, mas valorizados, acolhidos e tratados...

    
                                                          



[1] Psicanalista, Mestre e Doutora em Educação, Pós-Doutora em Psicologia ( Psicanálise e Cultura/UFMG)
[2] Data de lançamento 2 de julho de 2010 (1h 30min )Direção: Laurent Tirard França,
[3] IN: Pequeno Manual da Inestética.
[4] Verificar: Sobre as Teorias Sexuais das Crianças.
[5] Esta expressão de Rosine Lefort, psicanalista francesa, tem sido traduzida e conhecida como “a criança é um analisante por inteiro”.

DE QUE ADOECEM CRIANÇAS E ADOLESCENTES?

DO LADO DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES... o que as patologiza?


De que adoecem crianças e adolescentes? Como uma criança ou um adolescente pode ser atravessado pelas infâncias e adolescências produzidas pela sociedade contemporânea?
Diz a mensagem de watzapp: “Bom dia, sou mãe de um menino de 1 ano e 5 m. Quero saber se a senhora pode atendê-lo e quanto cobra. Ele tem tido crises de nervosismo, se auto agredindo, batendo em seu rosto, puxando seus cabelos, se arranhando até sangrar. Mas é bonzinho, quase nunca chora ou grita”.
Como esta mãe, muitas outras desesperadas, “sem saber o que fazer”, buscam tratamento para seus filhos.
Deparamo-nos ainda, no cotidiano da clínica, com a criança e a loucura. Seja a loucura de seu entorno e daqueles com os quais convive, seja a sua própria loucura.  Solidária à definição de LOBOSQUE ( 2013,p. 71) “o que chamamos de loucura será talvez o aflorar de uma singularidade irredutível, para a qual não se consegue inscrição. É excesso sem limite, vazio sem contorno, repetição sem fim” - acolhemos na escuta.
Hannah Arendt (2000, p. 238) discute a responsabilidade daqueles que devem introduzir o  “recém-chegado e forasteiro, nascido em um mundo já existente e que não conhece”.  Afirma que a escola é a instituição que interpomos “entre o domínio privado do lar e o mundo, com o fito de fazer com que seja possível a transição, de alguma forma, da família para o mundo”. 
Contudo, podemos interpelar, para além da escola, as mais diferentes formas que nossas crianças têm encontrado para “chegar ao mundo” e os efeitos disso sobre elas.
Estamos às voltas com crianças que chegam à clínica cada vez mais precocemente muitas vezes antes ou em seu primeiro ano de vida, com intenso sofrimento psíquico.
Em muitas  infâncias, as crianças são expostas às tragédias, violências e contradições. Milhares de crianças têm seus direitos violados.
As informações chegam pela hipermídia para muitas crianças, feito enxurrada. Muitas crianças de 4, 6 anos, têm seus tabletes; muitas crianças de diferentes idades têm celular, acesso direto a internet, algumas têm muitos grupos de wattzapp, chats, enfim, estão “plugadas”. Muitas entram no mundo real, pelo virtual. Outras vivem só, no virtual. Num mundo “fake”, umas e outras vão abrindo trilhas....Já podemos recolher alguns efeitos disso sobre as crianças. Outros, só depois.
Muitas que vivem assim, ligadas, são educadas pela angústia e para a angústia. O que deveria advir como mistério e enigma, as tragédias, atos violentos, erotização precoce, chegam rapidamente para elas.
As informações e conhecimentos dos mistérios da vida dos adultos a que muitas crianças têm acesso, contribuem de alguma forma para o “encurtamento” da infância, quiçá seu desaparecimento? O que se passa com uma criança sem infância?
Podemos dizer que um dos efeitos disso é a transformação de algumas crianças no que vou chamar de “seres em suspensão” que tentam se equilibrar na borda do mundo infantil e do mundo adulto, sem pertencer a nenhum deles.
Outro movimento importante que vemos acontecer é o da institucionalização das crianças de todas as classes sociais. As escolas de educação infantil se multiplicam e recebem bebês e crianças de 06 meses a 06 anos, para uma permanência de quase dez horas diárias. Isso também se estende a crianças de todas as idades no ensino fundamental, ora com a escola pública ampliada, ora com as escolas integrais particulares. Sem contar as que estudam só um turno na escola regular, mas no outro turno, estão no que chamarei aqui, de escola paralela. Escola para dar conta de acompanhar os conteúdos da escola regular... Não são mais aulas particulares, mas “salinhas” de todas as matérias em cursos indicados pela própria escola onde a criança estuda. Tudo isso com o assentimento de seus cuidadores.
A terceirização dos cuidados é também corriqueira na vida de crianças que estão fora da escola um turno, também de diferentes classes sociais. Em classes mais abastadas, os cuidados ficam a cargo de um profissional do ramo, por vezes tratado como parte da família, outras vezes, orientado a não criar uma relação e afeto com a criança para a criança “não sofrer quando perder”, pois a impermanência destes adultos está muito presente nos discursos das crianças em tratamento.
Sabemos dos efeitos desta institucionalização precoce e contínua. Lacan[1] já nos advertia dos efeitos sobre uma criança, da falta de um “interesse particularizado”. 
Poderíamos seguir inventariando múltiplas questões que nos indicam quem são, como vivem, de que padecem, o que dizem as crianças de nossos dias. Estas Notas evocam muitas e muitas outras situações e experiências a que o leitor poderá aventar. Importa que estejamos atentos ao ineditismo de cada criança que se apresente a nós, seja na escola, nas instituições, nos espaços públicos das cidades, na clínica.
Podemos seguir abrindo estas questões com o dizer de Freud, insistindo neste dizer... Nos últimos anos de suas elaborações, em meio ao mal-estar da civilização, Freud faz uma crítica à educação que podemos tanto situar na escola, quanto na família:

O fato de ocultar dos jovens o papel que a sexualidade desempenhará em suas vidas não é o único defeito imputável à educação de hoje. Pois ela também peca ao não prepará-los para a agressividade da qual estão destinados a serem objetos. Deixando que a juventude vá ao encontro da vida com uma orientação psicológica tão falsa, a educação não se comporta de modo diferente ao do caso de se cogitar em equipar pessoas para uma expedição polar com trajes de verão e mapas de lagos italianos. Torna-se evidente, nesse fato, que está fazendo mal uso das exigências éticas ( Freud, 1974,  p. 158, nota 1).
              
                                                                                                                
BH JULHO 2016





[1] Refiro-me a “Nota sobre a Criança” IN: OUTROS ESCRITOS.

Infâncias e adolescências na lógica do phatos....

INFÂNCIAS E ADOLESCÊNCIAS NA LÓGICA DO PHATOS: DESVARIOS E RISCOS

                                                                                              Tânia Ferreira

- Agradeço o convite de Arthur da Saúde Mental e de vocês, para esta Roda de Conversa.  Recebi com muita alegria, pois reitero minha aposta nos Fóruns como lugar privilegiado de operar certa torção na lógica do “para todos”, pois pode se deter no caso a caso, contribuir para delinear senão políticas, direções para os Serviços e equipes qto ao projeto terapêutico do caso, mas também organizar as ações sem sobreposições desnecessárias, mantendo a lógica do território.
- Fui, pois convidada a trazer algumas contribuições para esta Roda de conversa sobre a patologização da infância e da adolescência. Coloco no plural, pois existem várias infâncias adolescências no Brasil, nesta Regional. 
- Qdo fui pensar no que trazer para animar o debate, pensei em abordar o tema como ecoou em mim:  A patologização no sentido do que Viganó chamou “imperante nominalismo” – ou seja as nominações classificatórias das condutas, ações, e o que é pior, das manifestações subjetivas de crianças e adolescentes. O nome já diz: patologiza as ações....e a patologização no sentido do que podemos compreender como o que adoece crianças e adolescentes hoje. Ou seja: abordando pelos dois viezes: o nosso, de todos os agentes de cuidado e o das crianças e adolescentes que chegam aos agentes de cuidado.
-  Antes de tratar a questão da patologização, trago um dizer de  Freud em uma de suas cartas a Fliess, : “Sempre se é filho da época em que se vive mesmo naquilo que se considera ter de mais próprio” (Masson, J., 1986, p. 278). Perguntamo-nos: quais e como são as infâncias, “filhas” de nossa época? E as crianças?   De que sofrem? E os adolescentes? Quem são? Quais são suas perguntas, seus sintomas, suas perspectivas? E o que têm de mais próprio? Em que nos interrogam?
ARROYO (2008, p. 119-120) nos diz que “a infância interroga a pedagogia”. Para ele, as ciências do humano também são interrogadas pelo protagonismo social da infância. Ele nos diz ainda que a pedagogia se repensará na medida em que estiver atenta “a como a infância experimenta seu viver”.  Para ele, “são tempos em que as experiências da infância (ou diríamos - das infâncias) são tão tensas e precarizadas que as verdades da pedagogia sobre si própria e sobre a infância, entram em choque”. 
Estas considerações de Miguel Arroyo podem ser estendidas à saúde mental e aos diferentes dispositivos de atenção. Eles são interrogados pelas infâncias e pelas adolescências. AS infâncias e as adolescências, nas suas tensões, precariedades, mas também vigor e singularidade, fazem vacilar, muitas vezes, o saber  constituído. Não é justamente qdo interrogam que surge o império do nominalismo? Não é aí que se inicia o largo uso dos manuais classificatórios que homogeinizam nossos discursos?
  - A nomeação de uma manifestação da criança ou do adolescente seja através de um diagnóstico ou através do que se diz dela, sobre ela, a ela, pode ser tão pregnante que funciona como um substituto do nome-próprio e passa a justificar tudo: seus atos, gestos, comportamentos, sem que a ela nada possa ser atribuído, consistindo seu ser de objeto. Isso funciona como uma verdadeira maldição. Por isso é preciso suspender as evidências, sustentar questões junto aos pais e educadores.

- Desse modo, precisamos nos perguntar: Quem patologiza as crianças e adolescentes, por vezes gravemente perturbadas? Aquelas que se manifestam pelo silêncio, pela loucura, pelo enlouquecimento, pela estranheza? Aquelas e aqueles que nos mostram as variedades de constituição subjetivas?
- Pois bem: Para quê patologizamos? Uma das respostas é para a homogeinização dos discursos, para retomarmos o rumo e o saber estabelecido, de impotente para classificatório.
Ás vezes patologizamos  a invenção da criança, do adolescente seu modo particular de se haver com o real.  Exemplo disso é tomar como questão clínica uma dificuldade de aprendizagem. Muitos fazem da dificuldade um “problema” e então há logo uma medicalização. Qual de nós nunca teve dificuldade de aprender? Há entre a dificuldade e o sintoma da criança uma enorme distância. Outro exemplo é do fato que se tornou recorrente  é ver crianças muito angustiadas que, atuando a angústia se inquietam se agitam, se hiperativam. No lugar de interrogar e tratar a angústia que provocou este estado de coisas, trata-se a “hiperatividade” e como algo que não concerne ao sujeito, que está à revelia dele.
Medicalizar uma dificuldade é colocá-la no registro de uma patologia, decretando a maldição que recai sobre a criança e o adolescente,
       Uma das conseqüências desta medicalização, do que chamarei aqui “discurso ou ato medicalizador” é que os pais ou educadores sejam levados a se confrontarem com uma insuficiência de saber sobre aquilo que é manifestação da criança, do adolescente transferindo ao saber especializado a pergunta para a qual não conseguiram construir uma resposta.  Uma vez possuidores do nome do déficit ou do transtorno, ou do problema, eles se tornam meros agentes do saber científico, na perspectiva de cuidá-la e de protegê-la.  
- Não é a toa que o número de crianças e adolescentes hiperativos, com déficits de atenção e memória triplicou. Não é a toa tb que o número de autistas hoje é aterrador.  Dito isso, fica a pergunta: como cada um de nós contribui para a “patologização” da criança e do adolescente? Como cada um ou cada serviço vai fazer para tentar reverter isso?


O ADOLESCENTE....TORÇÕES

ADOLESCENTES: O QUÊ NOS ENSINAM DA CLÍNICA: O QUE FAZEM DO CORPO? SINTOMA?
                                                                                                           Tânia Ferreira


                  Agradeço ao convite de Andréa Guerra e Marina Otoni, à frente do Curso de Extensão - Adolescência e Psicanálise: o corpo, o sintoma e a clínica. 
                  Este empreendimento é de extrema importância neste momento em que adolescentes ocupam escolas, falam para a imprensa, posicionam-se frente ao golpe e à situação do país. Se antes em “moratória social” dada a representação que os adultos têm de adolescência, os adolescentes, eles mesmos, tomam a palavra, furam o silêncio de um protagonismo circunscrito ao mundo de cada um e vão às ruas. Dizem o que querem, seus medos e angústias, quais são suas ocupações e de quê se ocupam.
                É neste contexto que nos ocupamos dos adolescentes...
                Cabe pois, uma primeira torção: Da adolescência ao adolescente...
    O que se passa com o adolescente? Já se tornou naturalizado entre nós as chamadas “crises” na e da adolescência. Sabemos tudo sobre as “crises”, sobre este tempo. Hoje nos pautamos pelo “modelo normativo das crises”. A crise da adolescência foi normatizada, por isso mesmo esperada, sem muita surpresa, indagação, perplexidade, tornada normal. Faz parte da fase, da idade.
 Será que não corremos o risco de já não nos perguntarmos mais sobre este ou aquele adolescente? Muitas vezes encontramos respostas para suas ações e para seus gestos, na adolescência mesma. Fazemos uma apologia das crises da adolescência, mas nos esquecemos de encontrar o sujeito aí, sofrendo em silêncio e, às vezes, “absolutamente só”, esperando a adolescência passar e com ela, o mal-estar (que, se persistir leva a crer numa “fixação” naquela fase do desenvolvimento).
A ideia de que “o mal é da idade que da tal menina – não há um só remédio em toda medicina” tem sido uma bússula a nos conduzir na errância do trabalho com o adolescente, principalmente no campo “psi”. Vamos dizer que “o mal é da menina que da tal idade” e que há remédio sim, para além da espera impotente de ver passar essa fase.
A idéia de que determinadas manifestações sintomáticas são típicas, próprias de tal idade, leva-nos a considerá-las normais. É muito comum também um discurso queixoso sobre o adolescente, como se as dificuldades fossem de quem convive com eles: chamam-no de “aborrecente”. Muitas vezes, até admite-se é que uma fase difícil, sofrida, mas que passa com o tempo, pois é um sofrimento normal, que está na norma. Já não nos caberia substituir a pergunta: “isso é normal nesta fase do desenvolvimento?” para: Isso causa sofrimento para o sujeito?
Bem então vamos tentar nos colocar questões sobre quem são os adolescentes nos dias de hoje.  Quais os aspectos psicossociais a que estão submetidos?
            Aquele mal que não é da idade, que não está de acordo com o desenvolvimento traçado socialmente, é do sujeito e muitas vezes, é tido como um transtorno. A palavra transtorno na nossa língua quer dizer: “situação que causa incômodo a outrem, situação imprevista e desfavorável, decepção, contrariedade”. [1]
           São várias as novas nomeações do sofrimento psíquico do adolescente hoje. Déficits de toda ordem: de conduta, de oposição, de atenção, de memória...  Pergunto-me se as novas nomeações do sofrimento do sujeito instituem os nomes da fantasia, passando a estar no lugar da verdade do sujeito. O que acontece é que no lugar do sintoma – texto do sujeito, aquilo que o singulariza, vem o nome do mal-estar: transtorno, déficit, síndrome.
                  Essas nomeações podem, até decidir a estruturação do sujeito ao tornarem-se a marca de seu sê-lo, o traço através do qual ele é reconhecido pelos pais, educadores e pelos agentes de seu tratamento.    
                  A psicanálise, na contra mão destas nomeações, tomando o sintoma não como sinal de uma doença, mas como o texto do sujeito, o modo como se arranja com o Real da puberdade, com impacto social,  com o encontro com o Outro sexo, quer encontrar o sujeito.
                Muitas vezes, o sujeito não habita o corpo puberal e portanto, à despeito da idade, não constrói a adolescência como remédio para isso que, por vezes, não o atinge. Escuto isso de psicanalistas e terapeutas: “O adolescente não aderiu ao grupo”...Ora, como aderir a um grupo de adolescentes se a adolescência não existe para ele?
                 Assim, a adolescência é uma construção da qual o sujeito pode ou não fazer uso dela... O fato de estar na puberdade, não quer dizer que a adolescência se faça necessária para ele...O tempo do despertar, por vezes,  está longe de coincidir com a idade....O contrário também é verdadeiro: há sujeito que pode fazer identificações com adolescentes, sem sequer ter vivido qualquer impacto puberal, desabitado de seu corpo infantil...
                 Assim, a adolescência, o adolescente, nos ensinam sobre o tempo e o sujeito na clínica.
     Freud nos indica que a tarefa mais difícil e árdua para o adolescente é a de ultrapassar a autoridade dos pais. Podemos nos perguntar: No momento em que em muitas situações os pais não têm se constituído em figuras de autoridade, que ultrapassagem possível? Que respostas os adolescentes têm inventado na ausência ou ineficácia desta autoridade? Novos sintomas? Novas práticas de rupturas do laço social?
Vou tomar o texto de Freud para falar um pouco da experiência do adolescer. Trata-se do seu texto “O mal-estar na civilização”. Ali Freud define o que chama as TRÊS FONTES de sofrimento humano: o que é do corpo, as relações com o outro, o mundo externo. Achei interesse pensar nestas três fontes, pois as considero que elas têm importância capital na vida de um adolescente, que está sempre numa encruzilhada entre o impacto puberal e o impacto social que vai desde o franqueamento do encontro com o outro sexo - proibido na infância, até a escolha profissional e construção da autonomia.
Vou começar pelo mundo externo hoje:
Globalizado, individualista, sustentado pelo narcisismo, hedonismo, consumismo... È marcado pela derrubada dos valores de humanidade, solidariedade... “você não vale nada, mas eu gosto de você”, também pela perda do limiar entre o público e o privado ou mundo do  Big Brother, das redes, dos sefs.  Na Tv, no elevador, nas dependências das residências, nos i fones. No dizer de Anna Harendt é que quanto mais a sociedade rejeita a distinção entre o que é público e o que é particular, entre o que pode vicejar de modo encoberto e o que pode ser exibido a todos em plena luz do mundo público, quanto mais o privado é transformado em público e vice-versa, mais difíceis se tornam as coisas para as crianças e adolescentes que pedem a segurança do ocultamento para se desenvolverem. 
O adolescente faz resistência a isso que da cultura põe a nu seu estranhamento com o mundo – o seu e do outro – ensinando-o que não é um livro aberto. Mesmo os blogueiros, tuiteiros, nos faces, que deixam ler sua intimidade, o fazem com uma escrita própria, enigmática. Diz a adolescente: é só minimizar, só minimizar”. Assim, minimizam a exposição de tudo que é mostrado e que neste tempo não se quer ver.
          Perguntam pais e educadores: Como educar na esperança, num mundo de desencanto? De tantos perigos? Ameaças? Iminências de perdas reais? Sem respostas, pais e educadores, muitas vezes, educam pela angústia e não pela esperança. Educar pela angústia é um dos modos de laço entre adultos e adolescentes a que eles também respondem angustiando. No lugar do limite, a angústia. No lugar da lei, as leis, as normas, as regras, as proibições. Esquecemo-nos de que dizer sim também é por limite. Dizer sim, “pode”, é delimitar o que não pode.
Quanto à adolescência, alguns autores dizem que ela nasce da ausência dos rituais de passagem, dito de outro modo, na ausência de recursos vindos do social para fazer margem ao fosso a atravessar entre a infância e a adolescência, é que o sujeito adolesce ( ou não).
A palavra adolescére vem do latim e quer dizer o mesmo que adoecer, enfermar. Se o mundo externo é tão ameaçador, pois o sujeito sai do mundo restrito da família e cai na rua, na cidade, na noite, as vezes ele se esconde na bolha do grupo, do bando, da tribo, da  gangue, do time, do grêmio, do rock ... ou da banda.   `Torna-se necessário então que se interrogue em cada caso, como se dá a entrada do sujeito no mundo...Se para fazer margem ao fosso, o sujeito faz a loucura ou o enlouquecimento, ou a infração, ou a toxicomania, ou sintomas somáticos. OU música, política, dança....
      A Segunda fonte:  O corpo.
Freud acentua que só a presença do corpo é em si problemática para o sujeito. Primeiro porque sua imagem para ser subjetivada, a cada vez de novo, impõe um trabalho psíquico. Para transpor o buraco vazio entre o corpo e a imagem, o sujeito há que trabalhar subjetivamente.
Há sempre uma sensação de estranhamento do sujeito com o corpo. Daí, o sujeito sofrer do corpo, sofrer com o corpo, sofrer por não poder “ter” um corpo. Como é o caso das crianças autistas e muitas psicóticas. O adolescente se vê: braços compridos, coluna curvada, pele espinhenta, menstruação, pêlos, ejaculação, mudança de voz, explosão de sexualidade, corpo estranho. Como suportar esse corpo que muda , incontrolável?
Minha hipótese é de que, se o sujeito não habita o corpo puberal e não usa a adolescência como um véu, ele pode fazer do corpo sintoma, segundo a estrutura.Mas aprendemos com Freud e Lacan que o insuportável da puberdade não é tanto as mudanças corporais, mas o não-saber sobre o corpo. Esse novo, mais do que o órgão, é a aparição, de novo, para o sujeito “de sua falha de saber no real”.
O encontro com o outro sexo, marcado pelos desencontros, pelo inexprimível, pela ausência de palavras para dizer, como cada sujeito a partir de sua estrutura lida com esse encontro desencontrado? Ë desencontrado, sobretudo, diz Freud, porque o menino entra na puberdade e deseja experimentar o encontro sexual, a menina deseja um encontro amoroso. “Tudo que você quer me dar é demais, é pesado, não há paz. O que quer de mim, ideais, expectativas desleais”. Cantam os jovens.
No social, o apelo: ou a saída pelo amor incondicional, na qual o Outro faz a função de barra onde o sujeito não encontra suporte de limite, ou a saída pela idealização amorosa: “Mesmo que não venha mais ninguém, ficamos só eu e você, fazemos a festa, somos do mundo. Sempre fomos bons de conversar, eu só espero que não venha mais ninguém . Aí eu tenho você só pra mim, roubo o teu sono, quero o teu tudo, se mais alguém vier não vou notar. Preciso de você pra me fazer feliz”.
Os usos e abusos de toda ordem onde o sujeito é objetalizado e se deixa apreender como objeto do Outro, do gozo do Outro: Os meninos e adolescentes avinhõezinhos, ou os que furtam para o líder do bando, os adolescentes de gangues, as drogas que chapam o sujeito, sua subjetividade.
Enfim, o corpo é o tabuleiro do jogo. Muitas vezes o corpo, para além das brincadeiras estéticas, é bordado de letras e figuras que fazem às vezes de um véu encobridor quando não há. Outras, é totalmente escrito, desenhado, contornado, para não ser lido... ainda pode ser perfurado com pircings espalhados por todo o corpo, para deslocar os vazios, os buracos do corpo, muitas vezes sem borda. Assim, vale indagar como o sujeito, a partir de sua estrutura psíquica lê e responde pelos eventos no e do corpo.
Dos adolescentes que se acidentam, se machucam incessantemente, as moças  que não se deixam nutrir ou das adolescentes dietantes, anoréxicas, bulímicas; Dos adolescentes psicóticos ou autistas - máquinas de movimento - os adolescentes esquizofrênicos estrangeiros do (im)próprio corpo, podemos extrair a máxima da estranheza do sujeito com o corpo, da impossibilidade inquietante de habitar um corpo, sobretudo no mundo light, dos anabolizantes, das intervenções medicamentosas e cirúrgicas, mas principalmente, um mundo virtual com escassos recursos simbólicos.
 A Terceira e última fonte : As relações com o Outro
A neurose, a psicose e a perversão nos ensinam modos particulares de lidar com a entrada do Outro. Sabemos com a clínica que cada sujeito inventa uma solução particular para ser no mundo, no mundo do Outro. Vale lembrar que está em jogo a incidência do desejo ou do não desejo do Outro na subjetividade do sujeito e isso pode manifestar-se de diferentes maneiras: passagens ao ato suicidas, doenças orgânicas, anorexias, várias outras manifestações sintomáticas e até as construções delirantes.
As crianças autistas se sentem perseguidas pelo sinal da presença do outro, sobretudo pelos objetos voz e olhar, tendo a presença do Outro como invasiva. As vezes há a rejeição ao chamado do Outro.  O sujeito neurótico joga com a alienação e vive toda sorte de embaraço para realizar a separação, pagando por isso ou pela não realização, o preço da inibição, do sintoma, da angústia. Na perversão o Outro vem com feições sempre de objeto do qual o sujeito há de gozar.
O psicótico nos dá mostra do horror da entrada do Outro sem mediação da lei do desejo. Não é isso que o sujeito põe em ato nas alucinações, nas construções delirantes? 
De outro lado, o social dita de certo modo, um jeito de lidar com o outro que enlaça o sujeito: “Você não vale nada, mas eu gosto de você” “Vem aqui que agora estou mandando, vem meu cachorrinho sua dona está chamando”.
Poderíamos  ficar aqui falando da contundência com a qual o sujeito responde subjetivamente pela palavra do Outro, pela incidência de seu desejo, pelo ponto opaco do saber do Outro, pelo que o outro por estrutura não tem para dar...
              Para finalizar, trago um dizer de Freud sobre a educação de jovens que nos permite extrair conseqüências também para a clínica :        
        “O fato de ocultar dos jovens o papel que a sexualidade desempenhará em suas vidas não é o único defeito imputável ä educação de hoje. Pois ela também peca ao não prepará-los para a agressividade da qual estão destinados a serem objetos. Deixando que a juventude vá ao encontro da vida com uma orientação psicológica tão falsa, a educação não se comporta de modo diferente ao do caso de se cogitar em equipar pessoas para uma expedição polar com trajes de verão e mapas de lagos italianos. Torna-se evidente, nesse fato, que está fazendo mal uso das exigências éticas” ( Freud,!939 1974, p. 158,nota 1).
         Talvez possamos nos perguntar também, se com o tratamento que propomos frente à oferta das novas nomeações, se também fazemos mal uso das exigências éticas, permitindo que o sujeito saia dos Serviços de Atenção, instituições diversas,  equipados com trajes de verão e mapas de Lagos Italianos para uma expedição polar, despreparados para a agressividade da qual estão destinados a serem objetos. Pois um tratamento ao adolescente, leva em consideração todas as dimensões do viver: ir e vir, estudar, brincar, ter acesso aos bens da cultura, mas sobretudo, suas saídas inventivas frente ao Outro e o que do real da estrutura se impõe ao sujeito.
          O tratamento visa destituir os nomes da fantasia que vieram no lugar do nome próprio, para que o sujeito construa, ele mesmo, o próprio nome. É a partir daí que algo do sujeito vem para ser nomeado.




[1] HAUAISS. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2004.

domingo, 30 de junho de 2013

ACONTECIMENTO POLÍTICO: BRASIL MOSTRA SUA CARA...

A POLÍTICA SEM PARTIDO...                  

Vivendo e acompanhando atentamente as manifestações e protestos no país, vários momentos e fatos saltam aos olhos, nos comovendo, sensibilizando, nos inquietando e fazendo agir. Esta escrita nasce deste turbilhão de emoções, impressões e leituras que se depreenderam daí.
Ver a comunidade da Rocinha, no Rio de Janeiro, pacificamente, diga-se de passagem, ganhar as ruas, a palavra, a voz, e, no caminho, a adesão da Comunidade do Vidigal, fez o coração bater forte e também, trouxe questões. Já vimos estas e outras comunidades dispersas e isoladas pelo país, se constituírem num coletivo reivindicador?
Diversidade, diferenças, cabendo nas ruas, nas praças, nas portas dos Palácios de Governo, Assembléias Legislativas, Câmaras de Vereadores, Senado... 
Brasil de raça e cor, do futebol e do carnaval, verteu-se em Brasil que quer lei, igualdade social, respeito às diferenças, direitos, punições às violações de direitos. Quer e luta....Luta, manifesta ações, discute, lê e pensa, apresenta propostas aos governantes...
Sim, agora é o povo! É o povo brasileiro, fruto de anos de luta pela democracia, de sangue derramado nas ruas e nos laboratórios da ditadura, filhos dos filhos da geração AI5, silenciada, acuada, caçada e aterrorizada pelos horrores das torturas feitas aos seus antecedentes....
Em meio ao amor pelo futebol, o verde-amarelo dos estádios ganha as ruas nas caras pintadas dos jovens, seus familiares, seus professores, trabalhadores, operários, profissionais diversos, movimentos sociais, pessoas de diferentes cidades, periferias, aglomerados, morros, favelas, vilas, zonas-sul...Classes sociais diluíram ali, nas ruas e principais avenidas das megalópoles, das metrópoles, das pequenas cidades de múltiplos Estados da Federação.... Explosão de gritos, gestos, de escritas em faixas e cartazes que enchiam de imagens a rua povoada...A maioria das pessoas ao som das palavras de ordem: “Abaixo a corrupção”, “Da copa abro mão, quero saúde e educação”,  “Agora eu vou falar, a educação vale mais que o Neymar”..."Passe livre” e outras infinidades de denúncias e reivindicações, não recuaram frente ao aparato policial, por vezes, também violento, quanto pequenas parcelas da população que ganharam a rua...
Os manifestantes, eles mesmos, intervinham nas confusões, saques e depredações, esbravejando que o "Movimento é Pacífico"....Toda violência deve ser coibida! Toda depredação, vandalismo, radicalismo “louco” erradicada – consenso da multidão nas ruas....Puro exercício democrático, exemplo de povo que se fez libertado!

ACONTECIMENTO POLÍTICO: O DESPERTAR DO GIGANTE

Alain Badiou, filósofo francês, caro aos psicanalistas por sua constante interlocução com a psicanálise, nos trouxe um conceito que nos auxilia na leitura destes fatos inéditos: milhares de pessoas unidas sem partidos políticos, sem lideranças políticas destacadas, qual seja, o conceito de  ACONTECIMENTO POLÍTICO.

BADIOU[1] em uma de suas Conferências, discute o Acontecimento Político, dizendo que[2]
“quando há um verdadeiro acontecimento político há um fim do caráter indeterminado do poder do Estado. O povo se levanta e diz: “este é o poder do Estado frente a nós”. É como nós dizemos que é. Dito de outro modo, um movimento que fixa uma medida do poder do Estado. É algo que obriga o Estado a mostrar realmente qual é seu poder.E, por essa mesma razão, há algo da submissão que se detém. Porque, senão, seguimos submetido ao que está indeterminado”.
Badiou nos diz ainda que
 “podemos dizer que um acontecimento político é o que dá uma medida ao poder do Estado. É o que faz com que não possam seguir decidindo que temos que nos submetermos a um poder indeterminado, desconhecido. Exatamente que quando tem uma greve numa fábrica. Lhes dou um exemplo muito sensível. Aí se mede qual é a força real patronal, embora no funcionamento de todos os dias da fábrica, este poder exista constantemente. Porém, está indeterminado e não está medido. Só o elemento “greve” vai permitir uma medida real deste poder. Este é um ponto absolutamente essencial. Um acontecimento político é algo que permite a cada qual manter-se à distância do Estado, por que o acontecimento tem determinado, fixado o poder do Estado.(....). Eu diria, com gana, que esta distância é a política mesma. Nesta distância, podemos construir um tempo e lugares políticos.

Prossegue Badiou explicitando o que está em jogo nesta questão, em termos subjetivos e que nos interessa assinalar. Para ele, “nesta distância deixamos de ter medo”, pois a política é “amplamente o final do medo”. Porém, assevera, é o fim do medo por razões muito precisas, que justamente é que não temos medo de algo que é indeterminado. Podemos, segundo ele, ver que estamos submetidos a um poder do Estado muito grande, mas decidimos medi-lo e podemos, neste momento, ver as consequências disso.

Caminhando um pouco mais, nos brinda com um conceito de política da qual somos solidários: “Vamos chamar a política a uma ação que trabalha pela igualdade a partir de determinado valor fixo do poder do Estado, valor que fora fixado por um Acontecimento”.

Daí poder dizer: O Brasil está sob a égide do Acontecimento político, uma vez retirado o manto que escondia o poder do Estado, a corrupção, o que se gasta com a “copa do Mundo” em detrimento dos investimentos sociais tão esperados há décadas.O povo Brasileiro está tecendo a verdadeira política.

SONHO DE BADIOU, SONHO NOSSO - UMA POLÍTICA SEM PARTIDO                   

Nenhuma bandeira nos representa, só a bandeira do Brasil”...Grita a multidão em coro e em bom tom, frente às tentativas de alguns oportunistas tomarem para si e para seu partido político, o ACONTECIMENTO.
Sem chances!!! O povo não se sente representado sequer pelos partidos de esquerda com que sonhou em outras épocas sombrias e, muito menos, se sente representado pela OPOSIÇÃO que já serviu, em outros tempos, de esteio do povo e de suas contestações, protestos e reivindicações. Hoje, a oposição, mesmo insistente e persuasiva, não “pesca”a multidão, nem a seduz...Inútil querer para si ou “louros” deste movimento, posto que ACONTECIMENTO POLÍTICO.
O povo acontece e faz acontecimento...Realiza o sonho de muitos, o nosso. Faz política: engendra algo novo e inédito, onde havia submissão e violação de seus direitos.
Como protagonizou Badiou, a verdadeira política é a política sem partido, sem a representação de partidos. No nosso entendimento, a partir de Badiou, a política que nasce nas entranhas do tecido social, cresce, amadurece em silêncio e, num repente, desperta, fala, pronuncia, protesta, se organiza, mede o poder do Estado a que o povo está submetido, subverte a natureza desta submissão na justa distância criada entre ele -  o povo - e este poder louco do Estado. 
Poder que caminhava, até então, mesmo em democracia, à revelia das reivindicações, das necessidades, desejos e da consciência do povo...Um Estado que está aprendendo com o povo o que é a política verdadeira, o que é a verdadeira democracia.  
Vamos, certamente colher outros frutos... A redução das passagens, o ir e vir, a tentativa de romper o isolamento de quem tem na cidade seu lugar de trabalho somente e não de cultura, lazer, serviços e possibilidades. A Reforma política está por vir...Um plebiscito forçado pela voz do povo...A visibilidade do que se gasta com a Copa do Mundo e os lucros engolidos pela FIFA...A corrupção como crime hediondo..O que se pretende investir em educação, em saúde...
O Acontecimento Político é marcado também pelo ineditismo e pela surpresa... Diz a multidão: “Isso é só o começo”...Depende de nós...



[1] 1 . Conferencia del día 24 de abril del 2000.  http://www.grupoacontecimiento.com.ar/documentos/documentos.htm

[2] Tradução nossa do espanhol.               

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Psicanálise e Vida Cotidiana

      O leitor familiarizado com o texto freudiano tomará o título deste blog como paráfrase do que Freud escreveu: "Psicopatologia da vida cotidiana". Mais que parafrasear Freud, sigo sua trilha: o interesse pela vida cotidiana e seus avatares, desejando "não suscitar convicção; mas estimular o pensamento e  derrubar preconceitos".
      A escuta atenta aos atos humanos mais "casuais" como o de balançar as pernas involuntariamente, mexer nos cabelos, levar a caneta à boca, ir justamente para o lado que vai o desconhecido na rua quando na verdade, queríamos ir em direção contrária; esquecer  nomes próprios e outros nomes com os quais temos intimidade, levou Freud a buscar o sentido inconsciente destes atos cotidianos, aparentemente sem sentido e sem importância.
      Ao mesmo tempo, foi um psicanalista atento aos movimentos da civilização, aos movimentos (des)civilizatórios, ou no dizer de Mezan (1985) um "pensador da cultura".
      Aqui, no caminho aberto por Freud, no qual Jacques Lacan se introduziu e deixou suas marcas, desbravando outros ainda lugares desconhecidos, vamos cunhar o nosso caminho.
      Eis que, no lugar da "psicopatologia", a psicanálise quer advir com a vida e na vida cotidiana...
      Uma psicanálise que se ocupa dos efeitos de acontecimentos que vêm de fora e, por vezes à revelia do sujeito ou do coletivo ocupando-se dos efeitos sobre eles.
        Fazer psicanálise do que, do país, da cidade, da rua, atravessa o sujeito ou o coletivo cotidianamente é o motor deste escrito na rede social.
       Um psicanalista tal como "um artista tem de ir aonde o povo está"... Atento ao movimento humano e (des) humano, ao que atormenta, transtorna, assalta, une, desintegra, organiza, divide, alegra, apazígua. Ao que cada um de nós, em particular e como parte de um coletivo, fazemos com que a vida dá ou tira; oferece ou priva, abre ou fecha.
      Ao amor e ao desamor, ao valor do Outro ou à sua anulação; ao ódio e às consequências sobre uma nação, ao povo de uma nação ou a cada um - cidadão ou não - sempre sujeito interessante para a psicanálise.
      Com a psicanálise, seu saber e seus interrogantes quero tornar estranho o que acaba sendo familiar, dada à sua proximidade cotidiana: a violência, os assaltos, as guerras, a morte, a anulação do Outro, a violação de direitos humanos, a desumanização do humano.
      Cada sujeito em particular que procura um psicanalista, o faz com e na esperança. O psicanalista condensa uma esperança que o sujeito tem de ser e viver melhor, de estar menos desconfortável no mundo e no campo do Outro, de contornar pontos de angústia, medos e pânicos, de se libertar até das grades imaginárias que lhes impede os movimentos.
      Expandindo os limites de sua prática, a psicanálise pode fazer sustentação da mesma esperança, transmitindo seu modo singular de "ler" e estar no mundo. No "para todos", a psicanálise introduz o Um... extraindo da experiência cotidiana, da escuta analítica, algo que possa contribuir para a construção do saber de muitos, e quiçá, com certo alento-véu frente ao real que nos toca a todos.
       Boas vindas e aguardem a próxima discussão: Um elefante numa loja de cristais...Até lá!